MOCHILEIROS DA FÉ – RESENHA CRÍTICA

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BITUN, Ricardo. Mochileiros da fé. São Paulo: Reflexão, 2011. 2ª Edição. 125p.
Ricardo Bitun, autor da presente obra a ser analisada, é pastor da Igreja Manaim, uma igreja pentecostal independente na capital paulista, e um mobilizador em prol a relevância da igreja diante do pluralismo da sociedade[1]. É nesse sentido que direciona sua pastoral, voltando-se ao resgate de áreas muitas vezes abandonadas pelos crentes, tais como cultura, engajamento social e meio ambiente. Palestrante em eventos pelo país, Ricardo Bitun possui graduação em Teologia pelo Seminário Bíblico de São Paulo (1987), graduação em Ciências Sociais pela Universidade São Marcos (1993), mestrado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (1996) e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007)[2]. Atualmente é adjunto da Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenador do curso de pós-graduação do Programa de Ciências da Religião da Universidade Presbiterana Mackenzie. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da religião, atuando principalmente nos seguintes temas: direito, religião, violência, democracia e neopentecostalismo.
Nesta obra específica alguns elementos precisam ser considerados antes da análise e que nos ajudarão na compreensão da obra como um todo. A primeira questão é que Ricardo Bitun é sociólogo e cientista da religião, e neste sentido ele apresenta os dados da sociologia como ferramentas que procuram elucidar os movimentos religiosos no Brasil das últimas décadas. Como sociólogo, ele tem os pés fixados em Max Weber, com ênfase no conceito de processo de secularização, ou seja, a religião como um fenômeno cada vez mais particularizado e a redução da religião a um produto de mercado. A religião, neste sentido, parece atender ao conceito de oferta e procura. Sua visão está, como cientista da religião,  fixada nos movimentos pentecostais, mas, sobretudo, nos novos movimentos neopentecostais que têm crescido de modo exponencial nas últimas décadas. Duas principais igrejas entram na análise: a Igreja Universal do Reino de Deus, doravante IURD, e a Igreja Mundial do Poder de Deus, doravante IMPD. Elas são os grandes expoentes desta secularização e/ou mercantilização da fé.  A tese é que a busca por bens terrenos fazem dos novos crentes caçadores de tesouros que peregrinam pelas igrejas para os quais o conceito antigo de fidelidade religiosa parece não existir mais.
 
Perspectiva geral da obra 
Há certas resistências em círculos acadêmicos quanto ao uso de metáforas para ilustrar fenômenos religiosos. A metáfora do mochileiro, conforme o autor, não pretende encerrar em si todo o significado do fenômeno em análise. Somente quem vê o fenômeno religioso de fora é quem tem a ideia de que é um cerco limitado e imutável. 
Primeiramente é necessário, segundo o autor, descrever o mundo no qual os mochileiros da fé transitam. A sociedade contemporânea, ou mundo secularizado, é o novo paradigma oriundo do mundo cuja sociedade era tradicional e do mundo cuja sociedade era moderna. A sociedade tradicional é caracterizada por poder central patriarcal, economia baseada na agricultura e a sociedade hierarquicamente divina. Esta sociedade tende a ser mais estável, a economia de baixa produtividade e de estruturas rígidas. A sociedade moderna, por sua vez, grande produtividade e mecanização dos processos produtivos, racionalização da vida e dos processos que implica em grande resistência a religião e paradigmas divinos fixos e imutáveis, e há um deslocamento da massa da população dos campos para as grandes metrópoles, mas há um momento recente de mudança neste paradigma.  A euforia causada pelo progresso tecnológico pôs o homem em condição de guiar seu destino. O céu desceu e as perspectivas do além estão apenas aquém. A secularização é o passo seguinte ao modernismo.     
O segundo passo é procurar identificar os espaços nos quais os mochileiros da fé transitam e como este ambiente foi formado. A Independência do Brasil e a chegada da família real portuguesa ao Brasil no século XIX são elementos fundamentais para a abertura da liberdade religiosa no Brasil e a consequente chegada das mais variadas denominações protestantes como Presbiterianos, Batistas, Congregacionais e Episcopais. Já no inicio do século XX temos a chegada dos primeiros pentecostais e a formação das primeiras denominações pentecostais com perfil brasileiro, sendo a Assembleia de Deus a principal delas. O grande crescimento da Assembleia de Deus se deu por dois fatores primordiais: sua grande ênfase no trabalho urbano e a rápida mescla com elementos da cultura popular brasileira como o conceito de que a igreja é uma agência de cura divina.  Os desdobramentos deste conceito são fundamentos importantes para a compreensão da mercantilização e da baixa fidelidade dos seus membros: características empresariais de prestação de serviços, distanciamento da Bíblia, não há senso de comunidade, mas os frequentadores são clientes, culto como simples ajuntamento de interessados em serviços rápidos e um ambiente intenso de magia (pág. 54).  Dentro das três ondas do pentecostalismo no Brasil, a terceira onda, fortemente representada pela IURD e pela IMPD intensificaram estes elementos e o grande trânsito de membros (mochileiros) entre elas.
A IURD é hoje um grande complexo empresarial com rede de televisão, rádio, jornais, revistas, etc. Fundada há mais de 30 anos pelo Bispo Edir Macedo, tem na grande capacidade empresarial e visionária de seu líder a explicação de seu grande crescimento e poder econômico. Sua mensagem de prosperidade, cura e felicidade é grandemente ilustrada pelo discurso e aparência de seus pastores (pág. 64).
Valdomiro Santiago, bispo da IMPD, é dissidente da IURD. A dura experiência de naufrágio na época é sua explicação para fundação de um ministério tão intenso, ainda que jamais tenha dado uma explicação clara sobre o seu desligamento da IURD. Desde então é notória a tensão e disputa entre os seus lideres pelo mercado. A identidade da IMPD é chamada de identidade contrativa, ou seja, na forma do nos contra eles. É muito comum este discurso na IMPD pelo seu líder Valdomiro Santiago. Na IMPD, assim como na IURD, há grande oferta de símbolos religiosos a associação dos mesmos à cura divina e prosperidade, objetos que assumem sacralidade temporária e logo são substituídos por outros. E todos são comercializados. O jornal, a televisão e o rádio são instrumentos fundamentais de ambas as igrejas. Isto permite ainda mais contato com seu público-alvo e permite a este mesmo público a participação mediada da experiência religiosa. Os testemunhos das bençãos e curas alcançadas aparecem em grande número.
O crescimento de tais igrejas como a IURD e a IMPD se dão em parte pela grande capacidade destas igrejas de perceber as gritantes necessidades dos homens urbanos e de como atender estas necessidades como a necessidade da cura, emprego e prosperidade. No entanto, quando se analisa o fenômeno do ponto de vista sociológico, o processo de secularização é decorrente do desencantamento da religião e de que esta passa a ser relegada ao âmbito particular e a substituição da religião pelo conhecimento científico. As análises da década de 1960, quando o pentecostalismo crescia, eram para muitos um eclipse da religião, uma espécie de reencantamento enquanto para outros era a expressão religiosa reforçada pela secularização (pág. 100).
O autor parece apontar na direção de que a secularização explica melhor tal fenômeno uma vez que a liberdade de escolha da igreja por parte dos fiéis é uma tônica nos discursos e entrevistas feitas ao mesmo tempo em que a oferta de bens religiosos está presente. O trânsito religioso é interdenominacional (católicos, espiritas, etc., que vão para igrejas evangélicas) e intradenominacional (evangélicos que mudam dentro das próprias vertentes neopentecostais). Este trânsito se dá principalmente pelas ofertas de cada uma das denominações. ¨Esta oferta é tão enfatizada que chega até mesmo a reelaborar o significado de conversão protestante¨ (pág. 113).  
A IMPD é um destaque importante dentro da obra porque parece a primeira que realmente fará frente a IURD, complementando o seu papel dentro do mercado religioso com grande ênfase nos objetos sagrados. O autor termina dizendo que, provavelmente, a IMPD será protagonista de um continuísmo mixado das antigas ondas ou mesmo a igreja que abrirá as portas para a quarta onda pentecostal no Brasil.  
 
Analisando, selecionando e refletindo
A intenção do autor parece ser analisar o presente e projetar perspectivas para o futuro próximo dentro do tempo e das perspectivas da qual trabalhava então. O sucesso destas igrejas como grandes empresas chama a atenção de especialistas ao mesmo tempo em que causa espanto e admiração, quando não, duras críticas, de outros grupos religiosos.        
Assim como deixa em aberto quando ao futuro da IMPD fazendo duas previsões diferentes, uma em relação ao continuísmo com o resgate de elementos das três ondas pentecostais e outra com o surgimento de novos possíveis elementos gerando uma quarta onda, podemos afirmar que vivemos tempos de grandes indefinições e de constantes mudanças e que estamos muito longe de tempos de acomodação em qualquer área da sociedade que seja, quanto mais da religião.
As previsões do fim da religião no início do século XIX podem ser confirmadas sobre certos aspectos. É o fim da religião verticalizada, hierarquizada, voltada para o controle pormenorizado da vida. No sentido mais amplo é também o fim de uma religião simbólica (no campo das ideias e dos pensamentos, já que a religiosidade brasileira protestante ou evangélica atual é altamente simbólica em relação ao uso de objetos sagrados) e da à religião cujo Deus comandava as chuvas, o sol e o tempo das colheitas e plantio em sociedades majoritariamente agrícolas. Foi o fim da religião coletiva ou nacional e o início da religião individual, urbanizada e mercantilista. Homens como o Bispo Macedo e Valdomiro Santiago sabem ler os novos tempos ao mesmo tempo em que não tem amarras com qualquer outra religião tradicional. Pelo contrário, quebraram com suas religiões tradicionais e se colocam como opões para estas. Alie-se a isto sua grande capacidade gerencial e empresarial.
Recentemente observamos mudanças e novas direções em ambas, IURD e IMPD.  Com a construção do Templo de Salomão, o bispo Edir Macedo assumiu novas vestimentas e uma longa barba assumindo forma mais sacerdotal com qual parece querer dar características mais judaicas ao culto e assim angariar mais seguidores. Com certeza é mais um golpe de marketing muito bem dado, ao mesmo tempo em que chama a atenção do mundo e tenta deslocar os centros de adoração com construções ainda mais pomposas com as quais procura chamar ainda mais a atenção – marketing.  O incidente do tiro de Valdomiro Santiago tem sido amplamente explorado sob sua visão de nós contra eles. A morte do jornalista e apresentador Marcelo Resende, da concorrente Record, tem sido amplamente explorada neste mesmo paradigma da IMPD. Seu tempo na zona sul de São Paulo é também um contraste muito forte com o templo dirigido pelo Padre Marcelo, na mesma região. Este confronto direto, não apenas entre si, mas com religiões mais tradicionais com o catolicismo são marcas de suas igrejas.  
Talvez nos incomode, como crentes de igrejas tradicionais e históricas, o fato de que constantemente temos que ser reativos a estas manifestações e obrigados a oferecer respostas a estes fenômenos, ao mesmo tempo em que nos prendemos a conceitos mais tradicionais e modernos da religião.
O livro foi escrito em 2011 e, como não poderia ser diferente, novas análises devem ser feitas. O status da IURD e da IMPD ainda são praticamente os mesmos, mas parece que uma nova onda conservadora vai ganhando espaço ao mesmo tempo em que muitos mochileiros parecem migrar para igrejas históricas e tradicionais em busca de conhecimento bíblico e cuidado pastoral. É um movimento consideravelmente pequeno, mas já caberiam observações e análises.
A secularização é elemento fundamental não apenas na análise do crescimento religioso de denominações neopentecostais, mas um fenômeno presente dentro das próprias igrejas tradicionais, mas com efeito diferente. Se pelo lado neopentecostal gera um comércio com grande trânsito religioso, nas igrejas tradicionais parece conduzir a uma vida religiosa de final de semana com poucos frutos e poucas consequências da vida diária, mesmo que a religião não seja vista por estes como um comércio, mas ainda sim como algo de foro íntimo.
O livro não apresenta um juízo de valor sobre o fenômeno, mas como obra de um sociólogo, o livro apresenta dados e possíveis explicações para o fenômeno. Talvez estas igrejas devam ser analisadas apenas do ponto de vista comercial, empresarial e de fenômeno social. Elementos fundamentais dentro da perspectiva tradicional nos fazem olhar para as mesmas com ceticismo e muitas vezes até com desinteresse.
No entanto, é muito comum termos contatos com mochileiros da fé, ou seja, membros destas igrejas e que transitam entre elas. Eles possuem vocabulário específico, possuem um perfil que hoje varia bastante, para isto basta ver o que a IURD tem veiculado ultimamente, expondo pessoas ricas, de várias áreas da sociedade (empresários, esportistas, artistas, etc.) sob o slogan: Eu sou a Universal!, e claramente procurando novos nichos de mercado.
Em tempos de tantas mudanças nos resta esperar.

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