EU AINDA COMO MORTADELA

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Se na época em que eu era criança já tivessem cunhado o termo ¨bullying¨ de modo mais elaborado e se preocupado mais, eu teria sofrido menos e seria, também, um bom caso para análise. Talvez eu tenha colaborado bastante para isto, mas a verdade é que ninguém merece este sofrimento todo. Tenho marcas na cabeça das pedradas que levei, apanhava na rua e nem sequer podia reclamar em casa. Apelidos então? Meu deus, um monte. Uns doem só de lembrar. Mas não estou aqui para lembrar e nem implorar a dó de ninguém, nem preciso, não mais. Já me virei, ficou bastante caro (e não falo só de dinheiro), confesso que foi duro, mas já resolvi. Mas, entre estas desventuras tem uma que hoje soará como o dia da minha vingança – eu já comia pão com mortadela, e mortadela de verdade! No meu tempo era assim: levar pão com mortadela para escola era pedir para ser zoado, pedir para atrair, de modo terrível, a atenção dos outros. Até hoje não entendo o que tinha de engraçado em comer pão com mortadela, o que tem de engraçado em ser pobre. Pelo menos é o que sugeria levar pão com mortadela para a escola – quem comia pão com mortadela era pobre.

Passados 25 ou 30 anos o que ouço com frequência? Sempre chega alguém me dizendo, me perguntando: ¨sabe onde eu fui neste final de semana?¨, eu pergunto: ¨Onde?¨, ao que responde: ¨No Mercado Municipal¨, e segue: ¨sabe o que fiz lá?¨ E apesar de já imaginar, eu respondo e pergunto: ¨Não. O que?¨, ¨Comi pão com mortadela¨. Não tenho nada contra, pelo contrário, como mortadela até hoje. Aliás, nem tudo que chamam de mortadela realmente é mortadela. Não vou dar destaque aqui a este ou aquele tipo de mortadela, a esta ou aquela marca, nem dar detalhes das mesmas porque não ganho nada com isto. Mas, como já dizia meu pai: ¨nem tudo é mortadela, mas salsichão!¨. Bom, o que servem no Mercadão Central de São Paulo, pelo que já comi, é mortadela mesmo. No entanto, meu assunto não é este, mas os ¨vai e voltas¨ da vida e os modismos.

Lembro-me de ter visto uma reportagem há muito tempo atrás sobre maçãs. Os benefícios da maçã, o que se pode fazer com maçã, sobre a necessidade de comer uma maçã por dia, maçã, maçã, maçã… Achei aquilo muito estranho. Se não era reportagem encomendada por produtores de maçã, não posso dizer mais nada.

Hoje, como estamos sempre muito conectados, somos como que vigiados. Um BBB, reality da realidade. Nossas preferências, tendências, ou mesmo as influências que podemos sofrer, são meticulosamente estudadas, medidas, averiguadas, questionadas. Há especialistas em tendências de mercado e consumo, pessoas que sabem impor gostos e marcas. Aí vem a minha pergunta: o que a mortadela sofreu de modificação para fazer tanto sucesso agora? Lembremos que, analisando bem, tivemos até uma queda na qualidade da mortadela, e a que eu comia naquele tempo é tão cara hoje em dia que nem sempre eu posso comprar. A verdade é que a mortadela não mudou, é a mesma. Mudou a cabeça, mudou a referência das pessoas, mudou o foco. Não foi para melhor, nem para pior, mas mudou, simplesmente mudou. Atribui-se valor diferente as coisas, valorou-se diferentemente. Olha o disco de vinil, por exemplo, tem gente que acha muito bom, e paga mais de R$ 100,00 por um disco quando o CD, da mesma obra, custa R$ 40,00. Dizem que gostam do chiado, do toque do bolachão – uma apologia a fata de qualidade? Estranho porque a qualidade do vinil é reconhecidamente menor, ou pior, os discos de vinil ocupam mais espaço, é mais difícil de fazer uma cópia se segurança, exigem mais cuidado de quem os tem e manuseia. Sem contar a velha vitrola, que nem sempre é fácil de se manter, mas é absolutamente necessária para tocar os vinis. O valor não está na coisa em si, mas no valor que atribuem a ela.

Roupas de marca, carros, roupas, cortes de cabelo, tudo, tudo, tudo, convenções que cada época traz por si mesma. Estar na moda, estar atualizado, não ser ridículo, não ser passível de gozação, tem muito menos a ver com a qualidade da coisa do que com a coisa em si. Menos a ver com o que se tem, faz, veste, come, e muito mais com o valor que aqueles que nos rodeiam atribuem a estas mesmas coisas. Meus sanduiches de mortadela do passado seriam muito bem vistos hoje – desejados! E da marca que eu comia então! Hoje eu seria um privilegiado!

E os comportamentos? Falando dos jovens: hippie, grunge, metaleiro, punk, emo, blá, blá, blá. E cada comportamento com seu visual, cada visual com seu comportamento, e por aí vai.

Não quero propor a ninguém que se torne um extraterrestre, que seja totalmente fora de um padrão mínimo de gostos e usos. Eles são bons, ajudam a manter certa discrição e comportamento aceitável. Devemos, no entanto, ter a consciência de que os gostos e até valores de hoje nem sempre o são pela qualidade que tem, mas muito mais ao que se lhes atribuem. Não proponho que compremos ou tenhamos apenas aquilo que é mais barato ou simples, até porque pode concorrer contra o bom senso. nem tampouco, que se dê valor a alguma coisa pelo simples fato de ser mais caro (Lembra do escândalo da DASLU?). O que proponho é que a nossa forma de olhar para aquilo que temos e usamos deve ir noutra direção. Há até coisas que costumam custar mais caro à medida que envelhecem. É o caso de certas guitarras, por exemplo, e disto eu entendo bem porque é uma paixão antiga que tenho. Riscadas, amassadas, gastas, mas muito mais caras e com sonoridade muito melhor do que as novas. Até mesmo nós, seremos humanos, quando levamos uma vida sob critérios e exame, pelo menos do ponto de vista ético e moral e do ponto de vista espiritual, melhoramos, ficamos mais sábios, erramos menos, nos tornamos de mais fácil convívio.

Talvez o grande desafio seja mesmo o de remar contra a maré dos modismos e dar valor ao que tem valor, ter consciência da efemeridade de muitos aspectos da vida, não temermos assumirmos nossos gostos e posições.

Eu ainda como mortadela, mas já não tenho mais porque ter vergonha disto. Ou tenho?

Pastor José Martins Júnior

05 de junho de 2013

Desembutido dos embutidos

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