AO AMIGO JOÃO – CARTA ENTRE AMIGOS

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Carta entre amigos

Meu querido João,

Confesso que minha preocupação com você chegou a limites quase insuportáveis, choro e lamento toda vez penso em você, mas já sem muito consolo. Muitos questionam minha preocupação, que já não consigo esconder porque me altero toda vez que falam de você.  E por que me preocuparia? Sua boa condição financeira, sua boa forma física, suas viagens intermináveis, sua aparente felicidade e alegria, parecem fazer tola toda minha preocupação. Já há quem dissesse que no fundo estou sendo consumido pela inveja, que no fundo gostaria de ser como você, mas nós dois sabemos a verdade.

Sei que não foi o Diabo que te deu tudo o que você tem, foi conquistado pelo seu esforço, por sua capacidade, e nisto até te louvaria, não fosse a lembrança de um brilho nos seus olhos que durou pouco tempo, mas que tive a alegria de poder conhecer. Nem de longe seu sorriso nas redes sociais assemelham-se àquele brilho da mocidade, nem de longe suas conquistas de hoje são de fato gloriosas diante dos sonhos que você alimentava há pouco mais de 20 anos atrás. De fato são duas pessoas. Assisti a morte de uma e o nascimento da outra. Foi duro!

As dificuldades que passamos na igreja naquele tempo realmente foram terríveis e não merecíamos ter passado por tudo aquilo. Não tínhamos experiência, não sabíamos de nada, mas tínhamos vontade demais. Vontade que não souberam aproveitar. Faltou alguém que tivesse paciência com a gente e que sentasse para conversar nos orientando. Tomamos muitas broncas, fomos desligados da igreja e desprezados pelo que fizemos, não nos ajudaram, mas faltou-nos paciência também. Como todo jovem, consideramos os mais velhos atrasados e desintegrados do nosso tempo, coisa que hoje vemos que não é verdade, mas você deve se lembrar também de que falhou bastante. Tudo para você era festa, louvorzão, farra. Sua experiência espiritual foi muito fraca, quando vieram as dificuldades você não aguentou.

Lembra das tardes que a gente se reunia para evangelizar? Sempre tinha uma ¨almoção¨ antes e lá você estava, mas não me lembro de tê-lo visto uma vez sequer nas ruas e nas casas com a gente. Nestes almoços você era sempre o mais engraçado, o mais envolvido, o mais disposto a ajudar e servir, mas na hora do trabalho mais pesado você sempre sumia. O que acontecia? Tinha medo?

Lembro também que nos passeios e acampamentos você sempre aparecia, e eu sempre ficava na esperança de que você seria tocado por uma palavra, uma palestra, e muitas vezes até aconteceu, ou aparentemente aconteceu. Você voltava contente, falava para todo mundo sobre suas experiências espirituais, suas visões de anjos, de Deus, de Cristo, do Céu. Todo mundo te rodeava para ouvir suas experiências e palavras e você gostava daquela bajulação. Devo te confessar, depois de tanto tempo, que às vezes fiquei chateado com Deus porque eu nunca tive nada disto, minhas experiências sempre se resumiram a resolver problemas, suportar gozações, ter responsabilidades que não podiam de forma alguma ser ignoradas, muitas vezes paguei muito caro para que as coisas acontecessem pela irresponsabilidade de muitos, inclusive a sua (isto não é uma cobrança – já recebi de volta tudo em dobro!) Hoje a gente sabe que era um emocionalismo e um sentimentalismo sem pé nem cabeça, uma farsa, uma mentira. Sei que você ainda vê nossos antigos colegas e irmãos com certo receio porque sabe que enganou muita gente. Alguns ainda perguntam o que aconteceu com você. Sinto, nas palavras de alguns, certo ar de acusação porque acham que eu te fiz algo muito grave e que o afastou da igreja de vez. Mal sabem que sempre foi você que me colocou em situações difíceis. Cansei de quebrar os seus galhos e arrumar o que você bagunçou.

E suas explicações espirituais para não dizimar, contribuir com a igreja, ser frequente aos trabalhos da igreja, não namorar meninas que não fossem crentes então? E sempre em um tom superior e quase espiritual. Quem te ouvia parecia ouvir um novo apóstolo Paulo. Eloquência assustadora. Meu Deus, por vezes quase que acreditei também. Estive a beira da ruína espiritual mais de uma vez por causa destas ideias. Não estou te culpando não, mas é que sua capacidade de persuasão muitas vezes me encontrou enfraquecido pela lutas e dificuldades e eu era tentado a acreditar. Foi por pouco, por muito pouco.

Você dizia que o dízimo era da lei e não mais da graça, interpretando erroneamente muitos textos e ignorando o que Jesus disse, mas se esquecia disto quanto precisava de recursos da igreja, e não foram poucas as vezes que pediu dinheiro e outras coisas. Espero que sua prosperidade atual não te permita jamais se esquecer disto. Muitos jovens daquele tempo, por sua influência, são incapazes de contribuir para o Reino em suas igrejas até hoje. É lógico que o Novo Testamento não fala disto, ou fale muito pouco, eles eram crentes que não davam apenas dez por cento, davam tudo, mas você jamais alcançaria este entendimento.

Com tantas moças bonitas e crentes na nossa igreja e nas igrejas irmãs, você não se contentava e sempre trazia uma de fora. Meu Deus, hoje vejo que a pessoa mais prejudicada nestes relacionamentos eram as coitadas que não eram crentes e que você trazia para igreja para se converter, porque seu primeiro contato na igreja era justamente com alguém desobediente e nada espiritual. É bom que você se lembre que algumas delas até se converteram, mas jamais tiveram uma vida cristã de verdade porque a referência inicial delas foi muito fraca. Lembra o que você dizia quando eu te questionava: ¨ela tem tudo, só falta se converter! ¨.  Pois é, ainda falta isto. Não quero nem falar dos seus flertes com mais de uma por vez.

Engraçado, você sempre estava na igreja, mas quase nunca no culto. Onde você estava? Pelo menos na época que você tocou teclado no grupo de louvor da igreja, conseguíamos te ver durante o louvor e não mais. Era você que ficava conversando e rindo lá atrás do templo? Juro que a voz que ouvia e a risada espalhafatosa pareciam suas. Eram suas mesmo? Acho que sim. Ainda me lembro o dia que você me disse que estava entediado na igreja porque já conhecia todas as ¨historinhas da Bíblia¨ e já não havia muitas novidades para ouvir. Talvez seja isto que o tenha levado a correr atrás de igrejas da moda, pregadores da moda, bandas da moda. Pois é todas passaram e sua vida e sua fé me parecem ¨terra arrasada¨, território destruído após uma guerra. Não sobrou nada?

Você já é pai de seis filhos, o que seria uma benção, senão fosse o fato de você estar em seu terceiro casamento e nenhum de seus filhos morar com você. Sem contar que alguns já estão adolescentes e como era de se esperar, te odeiam porque você nunca foi um pai de verdade. Tudo bem que você diz que não falta nada para eles, mas a gente sabe que filhos não precisam apenas de comida e roupa, mas de disciplina, de amor, da presença dos pais.

Fiquei muito assustado depois de nossa última conversa há dois anos: você ainda duvida da sua salvação, não há igreja que te atraia, o bolso está cheio e o coração vazio.  Incomoda-me também este seu saudosismo sem pé nem cabeça, porque seu passado na igreja não foi bom. Você acha que foi, mas não foi.  Você não teve nenhuma experiência espiritual de verdade, jamais renunciou qualquer prazer por Cristo, jamais deixou de fazer o que queria, jamais acompanhou a vida espiritual de ninguém, jamais fez uma visita a um enfermo, doente, afastado da igreja, jamais levou ninguém a Cristo, jamais levou um prejuízo de qualquer natureza que fosse para que se mantivesse integro diante de Deus, não me lembro de ouvir você dizer que tinha orado e muito menos ter tido uma resposta de suas orações. Até a Bíblia, pelo que me lembro, nunca estava em suas mãos e suspeito que você jamais tenha lido um só capítulo por iniciativa própria. Sua vida espiritual, se é que podemos chamar assim, era o que você vivia na igreja, e como já sabemos, nem era tão intensa e verdadeira assim. Aliás, convenhamos, você nunca admitiu de fato, mas a igreja era um clube social para você, local de encontro, local de festa. Graças a Deus, você desistiu rapidamente de ir ao seminário e se tornar pastor, porque pouco provavelmente mudaria e ainda reproduziria este seu comportamento. Gostaria que, todos que pensam como você, também tivessem desistido, mas não fizeram.  Os resultados estão aí. E lamento ver gerações inteiras trilhando o mesmo caminho. Fingindo, mascarando, deturpando, desvalorizando. Sendo vítimas de si mesmas e destruindo a muitos.

Não dá para consertar o que está estragado. Talvez haja tempo para recomeçar. Sei que é muito difícil retomar com força aquilo que abandonamos. Difícil esquecer a culpa, difícil esperar a compreensão e recepção das pessoas. Elas sempre desconfiarão de você. Mas talvez, você seja capaz de pensar e realmente atender a quem você sempre desprezou: Jesus. Tenho certa esperança que todo seu carisma, aliado a uma fé verdadeira seja de muito proveito para o mundo a seu redor e a sua nova igreja, ainda que, infelizmente, carisma e caráter nem sempre andem de mãos dadas.

Não estou muito melhor do que você, aliás, tenho muitos problemas e já começo a perceber que alguns deles jamais terão de fato uma solução, o que me angustia de vez em quando. Mas não estou apenas tocando a vida, estou vivendo. Como não quis voar tão alto como você, também não levei muitos tombos. Hoje a gente sabe que esta história de ¨vamos aproveitar a vida porque somos jovens¨ é uma bobagem sem tamanho porque o resultado disto sempre é dor e prejuízo. Prefiro a paz e a tranquilidade. Tive a chance de perceber que as verdadeiras experiências com Deus se dão no curso do tempo, envolvem perseverança, provam nossa capacidade de esperar e deixar as coisas nas mãos d´Ele. Não tenho a admiração de ninguém, ou de quase ninguém, mas também não tenho do que me envergonhar. Não devo nada para ninguém. Um casamento só e longo nem sempre é um mar de rosas, as vezes é cheio de espinhos, mas a riqueza desta relação duradoura é ímpar e só possível se for assim: longa, pra sempre, até que a morte os separe! Tenho consciência de que não sou bom pai, dei muitas mancadas, estou apavorado com o futuro de meu filho, parece que às vezes vai tudo se perder, mas mesmo assim ainda vejo nele alguma esperança, ele parece ter alguma segurança.

Continuo na mesma igreja, mas já pensei várias vezes em ir embora. Tem muita hipocrisia aqui, gente fofoqueira, um jeito de resolver as coisas que muitas vezes nem parece jeito de crente, mas a igreja tem resistido ao tempo e as pressões, aqui ainda há muita gente crente de verdade. Deus já falou comigo e tem falado muitas vezes aqui, tem gente aqui que ora de verdade e conhece a Bíblia de um jeito muito especial e espiritual.  Apesar de tudo me sinto em casa e faço parte desta história.

Assim que puder, apareça de novo. Sei que não é fácil voltar aqui, mas tem gente orando por você.

Deus te abençoe.

Roberto Dias

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1 comentário
  1. Que prazer encontrar este post! A profundidade do
    conteúdo e a clareza na exposição tornam a leitura
    enriquecedora. Parabéns pela dedicação à qualidade,
    proporcionando uma experiência informativa e inspiradora.
    Este artigo é, sem dúvida, uma referência no assunto
    abordado.

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