AMOR LÍQUIDO – ZYGMUNT BAUMAN

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BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 87 páginas. Tradução de Carlos Alberto Medeiros.  

O debate vai do nível micro ao macro das possibilidades das relações humanas relacionais, ou seja, das amizades e do namoro ao problema extremamente atual dos refugiados de guerra e das catástrofes naturais. Ainda que esta existência seja sabidamente transitória, nos perguntamos como podemos amenizar as angustias humanas, potencializadas pelo esfacelamento das relações mais sólidas e torna-la um pouco melhor. Bauman, como sociólogo, é muito mais descritivo, ainda que no final do livro aponte algumas possibilidades, mas sem se arriscar muito. No tempo em que muito se fala de inclusividade, esta questão da ainda paira no todo da humanidade como uma grande incógnita e utopia. A modernidade líquida tem uma vantagem: bom saber que tenhamos descoberto que a verdade não está e nunca esteve conosco. A modernidade líquida tem esta vantagem, está aberta e em aberto: A mensagem de Lessing e Arendt é muito direta. Confiar a verdade a Deus significa deixar em aberto a questão da verdade (de “quem está certo”). A verdade só pode emergir bem no final da conversa — e numa conversa genuína (quer dizer, que não seja um solilóquio disfarçado). Nenhum parceiro tem certeza, ou capacidade, de saber qual pode ser esse final (se é que ele existe). Um orador, e também um pensador que pensa do “modo orador”, não pode, como assinala Franz Rosenzweig, “prever coisa alguma; deve ser capaz de esperar porque depende da palavra do outro — precisa de tempo”[1].

Apaixonar-se e desapaixonar-se – Ninguém mais se apega para sempre porque sempre quer deixar as possibilidades de que novas e melhores sensações possam sempre vir no próximo relacionamento, no próximo momento, no próximo dia. O desejo, outrora condenado, passa a ser ¨desejável¨, já nem mesmo há uma lógica diferente nas escolhas senão aquelas que sejam do caso dos desejos, vendemos sensações, porque na liquidez e celeridade do tempo, não é possível postergar as escolhas pelo desenvolvimento e da elaboração lógica do desejo, que certamente fariam dissipar muitas sensações (ideias e projetos). Desejar, de fato, requer elaboração. ¨Guiada pelo impulso (“seus olhos se cruzam na sala lotada”), a parceria segue o padrão do shopping e não exige mais que as habilidades de um consumidor médio, moderadamente experiente. Tal como outros bens de consumo, ela deve ser consumida instantaneamente (não requer maiores treinamentos nem uma preparação prolongada) e usada uma só vez, “sem preconceito” É, antes de mais nada, eminentemente descartável.[2]¨ Mas não é possível, ou pelo menos não deveria ser possível, tratar os relacionamentos como negócios, como algo comercial, uma troca onde há vantagens e desvantagens. Como em alemão em que Zwei significa dois, Zweifel significa dúvida, sabe-se que onde há dois não pode haver certeza. Como tocar a vida das pessoas com aquilo que é de valor subjetivo em uma sociedade cujo valor e sucesso (validade) de algo é sempre percebido em números? O ser humano já parece infeliz, cansado e sobrecarregado de sua própria existência, há mal-estar generalizado. Já não deseja suas relações imputadas pela genética (família, para muitos uma convenção social capitalista e fundamentalista) e, no entanto, não é capaz de “eleger afinidades”. Nega o que é, em primeiro lugar biologicamente, rejeitando sua família, e depois socialmente, rejeitando os outros. O movimento é o mais importante, não estar preso, não deixar-se parar nunca. Talvez ninguém consiga pensar profundamente em sua própria vida por mais de quinze minutos sem, inevitavelmente aprofundar-se em uma crise e, todos parecem saber disto. A vida sexual vive, também, a tensão da descartabilidade contra a necessidade psíquica e social do ¨até que a morte os separe¨, em tensão, também, das necessidades orgânicas do homem líquido. Há quem preveja um retorno às estruturas enclausuradoras dos tempos vitorianos, dada a volatilidade inquietante e angustiante que vivemos. Se não der para avançar, vamos retroceder.

Dentro e fora da caixa de ferramentas da sociabilidade – Consumir está ligado a sensação do novo, e mesmo produtos que sobrevivam ao seus consumidores, perdem seu valor tão logo coisas novas surjam. Os riscos implícitos das relações são amenizados pelos vendedores que prometem devolução do dinheiro caso não agradem ou a diminuição de riscos com expressões como sexo seguro. O que se faz cada vez mais é encurtar o tempo do desejo e sua satisfação, legalizando e criando regras para isto, diminuindo a culpa por meio do comprometimento de todas as partes. É o caso da troca de casais. O homo sexualis atual é diferente daquele que sublimava suas ações em movimentos sociais, despejando sua força libidinal no modelo freudiano. Hoje, apenas os impulsos da pedofilia e a pornografia infantil ainda mantém este status, mas pelo que vemos logo cai. Na falta da qualidade, a quantidade e a possibilidade de trocar o que for o mais rápido possível. O mundo virtual oferece a possibilidade da devolução por insatisfação e mantém sempre aberto o poder de compra, aumentando a cada dia o numero, já quase infinito de possibilidades. A liquidez convive com os paradoxos: propaganda de fast food (que engordam e geram muitos riscos a saúde), a indústria de dietéticos (o corpo perfeito e a saúde inabalável), em que ambos faturam muito, na terceira via, o governo pregando contra a obesidade. Na verdade a questão é: o dinheiro tem que circular. As relações no mundo de hoje só são possíveis ao homo oeconomicus e qualquer que esteja fora do consumo está impedido de ter relações. Trabalha-se e vive-se para consumir. A anarquia, ou seja, viver com estado do tamanho zero, implicaria em tal dimensão de responsabilidade pessoal que seria impossível ao homem de hoje. São necessários tutela e bens consumíveis.  “A solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado consumidor[3]” – uma consequência da influência do consumo nas relações humanas.

Sobre a dificuldade de amar o próximo – Amar quem te ama apenas e quem lhe é comum é amar a si mesmo apenas. Amar vai contra a natureza humana, mas é também a única coisa que nos diferencia dos animais.  Quem luta para sobreviver não precisa amar, apenas quem pretende viver precisa.  Não podemos esperar dignidade em um mundo de sobrevivências, mas sim a vitória do mais forte, que ataca primeiro. A tendência de que os laços/relacionamentos sejam cada vez mais fracos e baseados no prazer que o outro pode proporcionar tem como consequência inevitável a extinção do amor. A vida verdadeira só ocorre em meio ao caos de possibilidades. Os antigos tinham tudo à vista para decidir, hoje vivemos uma extraterritoriedade que nos afugenta e da qual nós queremos nos proteger. Globalizados, mas apavorados com as novas personalidades e invasões. A globalização diluiu o mundo trazendo ainda mais os estranhos para perto dos outros.  O efeito disto é a mixofobia: muros altos, sistemas de segurança e vigilância, uma sociedade territorial excluída da sociedade supra territorial.  Na contramão temos os discursos da mixofilia, ou seja, um desajeitado desejo de fusão social, quem ninguém sabe bem do que se trata e como fazer acontecer.  Os bairros se esforçam por serem homogêneos, nada de fusão de horizontes, apenas breves relacionamentos que aliviem a culpa. Segurança, segurança, segurança! É o que todos clamam.

Convívio destruído – O fenômeno da migração e imigração gerou o fenômeno de que o outro é quem traz a violência. O diferente, o forasteiro, o que chegou depois é o causador da desordem. Há nele alguma maldição. O terrorismo trouxe instabilidade ao mundo todo. Nunca sabemos de onde vem o tiro. O progresso de alguns países atrai estrangeiros que se tornam mão de obra, mas também um problema. O livro foi escrito antes da grande crise na Síria, no Haiti (para nos sul-americanos) e o Estado Islâmico. Temos um excesso de lixo industrial e familiar, mas com ele vemos as pessoas como lixo humano.  Kant, ao nos lembrar de que o mundo é redondo: afirmou que esta mesma forma do mundo implica em que a humanidade necessariamente se avizinhará, e disse isto 200 anos atrás. É simplesmente impossível que com o crescimento demográfico mundial, não invadamos um o quintal do outro. A soberania dos países exige que os novos chegados nasçam novamente na nação, mas vivem a tensão entre o querer isto e o não querer. Há um paralelismo entre lixo urbano e a humanidade transeunte e desterrada: que se reciclem. Os refugiados podem se tornar cidadãos? É uma questão importante. O lixo, como já sabemos, pode ser aproveitado para fins nobres. Há vidas que não valham a pena serem vividas e por isto possam ser definitivamente descartadas? A posse do território geográfico pelas nações dá a elas a posse das vidas humanas e o direito de  determinar suas vidas? Os refugiados ou estrangeiros parecem muito mais sujeitos a serem espremidos ou expulsos, mas não reciclados. Os campos de refugiados têm aumentado em quantidade de lugares e de habitantes. Seus países não os podem receber de volta e o novo não os quer.

O horizonte da humanidade é muito ruim, mas devemos aprender a ouvir os outros.  O problema não são as contrariedades nas relações, mas nossa convicção de que nosso ponto de vista é o correto. Sem as diferenças a humanidade já teria existido, mas a simples imposição das vontades unilaterais é o que a impede de ir em frente: ¨O fato de outros discordarem de nós (não prezarem o que prezamos, e prezarem justamente o contrário; acreditarem que o convívio humano possa beneficiar-se de regras diferentes daquelas que consideramos superiores; acima de tudo, duvidarem de que temos acesso a uma linha direta com a verdade absoluta, e também de que sabemos com certeza onde uma discussão deve terminar antes mesmo de ter começado), isso não é um obstáculo no caminho que conduz à comunidade humana. Mas a convicção de que nossas opiniões são toda a verdade, nada além da verdade e, sobretudo, a única verdade existente, assim como nossa crença de que as verdades dos outros, se diferentes da nossa, são ‘meras opiniões’, esse sim é um obstáculo¨[4]. O desafio da humanidade é compartilhar. O ponto de partida não poderia ser o atual mundo, mas de fato não temos outro.

[1] Página 81.

[2] Página 14.

[3] Página 45.

[4] Página 81.

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