COMO CHEGAMOS AQUI?

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Um clamor recente entre alguns batistas gerou esta reflexão. Devemos concordar com a preocupação e apresentar uma crítica sólida, consistente e corajosa que ofereça um diagnóstico mais apurado do caminho que nos trouxe até aqui. Não sei se será nosso caso aqui. Pretencioso. Noutras palavras, já não é uma questão de “onde vamos parar”, já que este futuro sombrio é presente, mas “como foi que chegamos aqui e o que é possível fazer para minorar os males”.

O mundo vem passando por mudanças severas nas últimas décadas e nenhum analista ou profeta é capaz de prever o limite das consequências destas mudanças. Mal somos capazes de diagnosticar o que estamos vivendo agora. Nosso fim se aproxima? Estamos entregues aos poderes da iniquidade? O cálice da Ira Divina está prestes a transbordar? O projeto da modernidade falhou? De quem é a culpa?

É impossível discordar da ideia de que somos produto do nosso tempo. Se não pela influência dele, por nos opormos e reagirmos. Ainda que esta reação seja uma indiferença que nos leve para uma terceira, quarta, quinta que seja, via de existir.

A nossa história, ao contrário de outras, possui tantos meandros e “diz que me disse” que não conseguimos ser unânimes nas generalidades e nem nas especificidades desta jornada. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, de que somos uma confusão sem fim de influências desconexas, nossa história parece muito mais verdadeira por não estar “maquiada e floreada” para esconder erros e sinceras tentativas frustradas de acertar. Nascemos na controvérsia, na fuga por sobrevivência, na tentativa da unidade, na mudança e na adaptação da mente. Uma história com erros acertos, idas e vindas, rompimentos e reconciliações, parece muito mais crível.

Entretanto, nosso assunto aqui não é a “paixão” das glórias passadas que nos une, mas a apatia, que nos deixa ser arrastados para o lodo da existência cristã porque não parece haver nenhuma reação contrária capaz de nos sacudir. Parecemos um barquinho à deriva da história. Alguns poucos marujos gritam na proa e na poupa sem receber nenhuma atenção vendo o desfiladeiro à frente. A estrutura do barco é forte. Poderá sobreviver a alguma grande queda, mas não sem muitas avarias. É madrugada e, desta vez, o sol pode não raiar. A metáfora do barquinho à deriva é apropriada.

1. Os tempos são outros

Poucos perceberam, mas o mar já se agitou, o leme escapou das mãos, o céu toldou, os ventos sopram incessantemente. Tudo se liquefez. O que era sólido já desmanchou no ar. As mudanças no nosso entorno não poderiam ser um incentivo e nem uma pressão pura e simples por mudança.

A própria palavra modernização é suspeita quando se pensa em avançar de verdade. Abraçar o novo pelo medo de ficar para trás é o primeiro passo no sentido contrário do avanço. A retaguarda é a nova moda. Esperar é o novo desafio. Ficar para trás é o melhor meio de vencer. De fato, para quem conhece um pouco da história, não há novidade nenhuma. Centralizar a esperança em líderes humanos, lançar-se a um triunfalismo que por natureza nunca teve bases sólidas, enriquecer às custas da manipulação de pobres desesperados, cercar-se de pompas em circunstâncias com o pretexto de que aquilo procede de Deus, obscurecer a verdade do Evangelho atrás de títulos e palavras incompreensíveis, são coisas que se veem desde o tempo dos apóstolos.

Quem apostou, principalmente no final do século XIX e início do século XX, que a religião seria extinta, revolveria no caixão caso fosse possível, mas não previram o pior. As massas incautas continuariam abraçando mentiras mesmo com um lastro tão grande de história e tanta disponibilidade de informação. Os novos “evangelhos” brotam como nunca. Inclusive, formas de cristianismo “descristianizado” lotam, a cada final de semana, igrejas repletas de fiéis seguidores daquilo que condenam.

Nos nossos arraiais passamos a detestar a simplicidade e aquilo que construiu a nossa identidade. Ouvir a palavra, cantar as velhas canções, atender às necessidades dos mais próximos, orar sem impostar a voz usando aquele “conjunto de palavras mágicas”, evangelizar e citar versículos de cor, virou coisa do passado. Aprendemos a maquiar nosso vazio interior com falsa beleza exterior e muito barulho. O barulho externo também mascara o silêncio ensurdecedor de corações vazios. E assim vão enchendo as igrejas. Gente atrás de diversão e de preencher o vazio de uma vida sem sentido com ainda mais vazio.

As mudanças e abandonos não acontecem de repente. São vagarosas. Pressões momentâneas são melhor percebidas e combatidas. Quantos hoje não fazem aquilo que no passado condenavam. Tantas práticas e teologias sem nenhuma fundamentação que, de tão combatidas, foram incorporadas. Poucos se deram conta que combater o tempo todo contra um inimigo é permitir que ele dite as regras e, em última instância, fazer o jogo dele.

2. Estamos sem liderança

A tripulação perdeu contato com a torre de comando. Os instrumentos de navegação agora nos faltam. Alguns deles quebraram e não há quem os conserte. Outros não podem ser manuseados porque faltam os especialistas e homens treinados em sua operação.

Alimento dúvidas sinceras a respeito de um passado tão glorioso de profundo conhecimento e informação. Havia seriedade ao pouco que se conhecia. Jamais, em nenhum momento da história tivemos tanta informação a mão, jamais fomos tão cercados de mestres, doutores, pós-doutores e livres docentes, mas jamais estivemos tão confusos e desanimados. Uma confusão e um desanimo que não paralisa, mas que empurra para o abismo. Uma tristeza ativa, pior que qualquer outra, porque busca, sem saber exatamente onde, porque as ofertas se multiplicam a cada instante, caminho e solução.

A verdade está no mesmo lugar, nas mesmas páginas, à mão, mas nos faltam os que a compreendam na sua profundidade e simplicidade. É preciso florear, é preciso completar, é preciso negar sua abrangência, é preciso dialogar com os tempos e rejeitar quem de fato revela a obscuridade presente. E, quando um destes marinheiros habilidosos aparece, é necessário afogá-lo logo: seja simples, não te entendo, nosso povo não é capaz de compreender! Os livros estão empoeirando nas estantes. Mas pode haver coisa pior que isto.

Tudo foi excessivamente horizontalizado. Perdeu-se o mistério e o imponderável. Para tudo temos uma solução e uma resposta que vem da ciência e da sabedoria de alguém com mais autoridade. Alguns nomeiam esta condição de secularização. O termo atenua a devastação que condição impõe à igreja. Tirou dela a mentalidade cristã, o paradigma de Cristo como cabeça da igreja e de sua Palavra como norte das suas ações e pensamentos.

Uma postura anti-intelectual também é presente, por mais ambíguo que pareça, mas ela tem um alvo em específico. Os filhos são orientados a cursar o ensino superior e buscar serem especialistas porque lhes renderá dinheiro e status. Na igreja, recorremos aos especialistas de todas as áreas para responder nossas inquietações, mas quando o assunto é formar nossos obreiros e pastores, é preciso cuidar muito bem porque nossas igrejas não precisam de teólogos, mas de pastores. Afinal, do que adianta formar grandes pensadores que não sabem se relacionar com o povo e não sejam pessoas assim tão legais no trato diário? No entanto, não formamos nem um e nem outro.  

Isto não vem de hoje, é uma construção longa e criteriosa. Os velhos marujos já não lutam mais. Consideram que morrer à deriva é algo nobre. Não suportam mais a terra firme de onde tiraram aqueles que com eles irão morrer.

3. O povo está perdido e sem referências seguras

A multidão de passageiros do barquinho se divide em condições e sensações múltiplas. Alguns acham que o balanço exagerado na noite escura é parte do “passeio”. Divertem-se com aquilo que os irá matar. Outros, já acostumados com o balanço do mar, dormem. Este sono não é como o do mestre. É o sono dos cansados e conformados. Alguns, percebendo o perigo, tentam uma solução, mas são “marinheiros de primeira viagem” e não conseguirão nenhum resultado real. Outros, na esperança de que sobre algo depois do desastre, ainda conseguem pensar e buscar a própria promoção. Todo navio carrega seus ratos.

A multiplicidade de denominações e a pluralidade de liturgias e formas administrativas não se explicam através de uma busca cada vez mais apurada pela verdade, mas por divisões, ciúmes, desentendimentos em questões periféricas, desejo por poder e, ainda mais, por amor ao dinheiro. Se aquilo que de fato é necessário para a adoração e serviço a Deus fossem prioridade, talvez tivéssemos mais igrejas e menos divisões. Na essência, as diferenças são superficialidades suficientemente poderosas para destruir a fé dos incautos. Que cansaço! É preciso divertir o povo porque senão podem partir porque as ofertas são muitas. Coisa própria de um comércio e, se tem comércio, o cliente sempre terá razão.

Mesmo sem saber diagnosticar muito bem, muitos percebem que algo está muito errado. E isto é plenamente possível. Qualquer um é capaz de perceber que suas pernas estão com problemas mesmo não conhecendo nada de anatomia, mas isto não é suficiente para resolver o problema. Talvez, nosso problema seja mais grave, caso de UTI. Respirando por aparelhos. Perdemos nossa história, nossa tradição, nossas referências e nos faltam pulmões para recobrar o ânimo.

4. Estaria tudo perdido?

Depois de tanto pessimismo era esperado que a resposta fosse um redundante não, mas devemos recusar qualquer espírito derrotista, ainda que a novas soluções sejam, de fato, as velhas soluções.

Vivemos um tempo maravilhoso para nos informar e nos comunicarmos, mas é preciso ser mais seletivo e desintoxicado. Já é hora de nos cansarmos de mensagens curtas, de posts com frases impactantes com a foto de pregadores famosos, ou de achar que tudo pode ser resolvido com a simplicidade de um cafezinho da tarde numa padaria descolada da cidade. É preciso reconhecer, também, que o mundo é cheio de gente maldosa e de gente bem intencionada, mas mal dirigida.

É preciso ter coragem para assumir a própria identidade e seguir os velhos caminhos. Não é preciso, para isto, desprezar ou atacar os que pensam diferente e que podem, por mais incrível que pareça, continuar como nossos irmãos. Existem diferenças irreconciliáveis e é preciso ter coragem para admitir isto sem que nos tornemos inimigos. Entretanto, os que não estiverem convencidos, devem ter coragem de mudar e assumir sua verdadeira identidade. Nos chateamos com aqueles que vão embora por já não concordarem conosco, mas tomara que todos fossem assim. Não insistiriam em mudar a igreja de dentro para fora segundo os seus próprios pensamentos. Mudar o que está consolidado.

A simplicidade e um certo minimalismo devem nos acompanhar cada vez mais. Podemos servir a Deus e adorá-lo com menos movimento, gastos, festividades, eventos, mas como muito mais eficiência. A coisa vem do coração, da alma. Partindo deste ponto, é possível que haja mais movimento, mas com mais direção e propósito.

Precisamos ter coragem para lidar com a complexidade da vida e do Evangelho e preparar líderes mais capazes. Parar de baratear o que nos está custando tão caro. Há muita boa vontade, e isto é louvável. E por que não direcionar essa boa vontade corretamente?

Acredito que ainda temos uma pequena janela para escapar e uma pequena margem para uma manobra eficaz.

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